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  • Jussara Santos

QUE SAIBAMOS RECEBER AS QUE CHEGAM


Há alguns dias, li comentários negativos dirigidos a duas mulheres negras: Kamala Harris e Djamila Ribeiro. A primeira saiu vencedora nas eleições presidenciais norte-americanas e será a primeira mulher com origem jamaicana e indiana a assumir a vice-presidência daquele país. Ribeiro é filósofa, tem livros publicados em torno de discussões como “lugar de fala” e muitos outros projetos que visam dar visibilidade à produção negra. Então, sem querer fazer aqui a vez daquela figura que já virou até personagem de programa humorístico – o/a comentarista de comentário – vou comentar algumas coisas que li. Depois da eleição da chapa Biden e Harris, muitas pessoas (eu fui uma delas) exaltaram o fato de uma mulher negra/afro-americana, defina como acharem melhor, assumir a vice-presidência da república nos Estados Unidos. Logo surgiram mulheres pra derrubar o feito e dizer que Harris “não é essa mulher, que ela atende a uma política norte-americana”. Li também que negros norte-americanos foram enganados, etc, etc, etc. Eu penso que nenhum negro nos Estados Unidos votou achando que o país tornar-se-á um paraíso, não votaram ingenuamente. Votaram para derrubar rápido o que a figura, a postura do atual presidente representa. Para a comunidade afro-americana acredito que a possibilidade de diálogo se vislumbra muito mais com a chapa vencedora que com o governo atual. Os Estados Unidos não deixarão de ser bélicos, imperialistas, não deixarão de tentar interferir em outros países porque essa chapa ganhou. Obama não fez isso, mas ainda que não tenha feito um governo excepcional, é inegável a importância da eleição de um homem negro que se reconhece negro nos Estados Unidos. Já Djamila Ribeiro foi entrevistada no programa Roda Viva. Uma excelente entrevista, ela bem consciente e lúcida nas respostas que deu. A bancada excelente também. Porém, li comentários vindo de mulheres que disseram que “ela já tem projeção, que ela já tem dinheiro, que ela só citou teóricas conhecidas, que há outras”, etc, etc, etc. No programa Roda Viva, Ribeiro salientou que Harris foi “atacada” em comentários e Biden, que será realmente o presidente, um homem branco, rico, não o foi. Eu pergunto então: por que atacar mulheres? Por que atacar mulheres negras que ascendem? Nós mulheres negras não somos iguais, não pensamos igual. Eu posso não concordar com tudo que Djamila Ribeiro fala e/ou escreve, mas negar a trajetória até aqui de uma mulher de pele preta, que assume a sua pele, em um país racista feito o nosso é, a meu ver, um tiro no pé, já que o sistema racista quer que façamos isso mesmo, quer que neguemos uns aos outros, umas às outras. Será que ela alcançou projeção sem trabalhar? Sem arregaçar as mangas? Sem passar por humilhações em local de trabalho? Eu digo que não, pois a trajetória é a mesma de muitas de nós que nascemos em famílias negras pobres. Quando ela cita Ângela Davis, por exemplo, para muitos e muitas a ativista é novidade. Vamos falar sério, quando essas teóricas eram estudadas nas escolas brasileiras, nas universidades brasileiras? Do ponto de vista histórico, nenhum professor, nenhuma professora nunca me falou do Panteras Negras, movimento ativista negro de suma importância nos Estados Unidos e eu e tantas outras e tantos outros descobrimos fora do espaço escolar. Estudei na UFMG e li escritoras negras fora das disciplinas que fiz. “Não faziam parte do cânone literário”, diziam. Mas eu sabia que quem estabeleceu o cânone foi o sistema branco hegemônico que dizia que literatura de verdade era a escrita por brancos, brancas, a outra era panfleto, manifesto, desabafo, lamentação. Então, que venham outras filósofas negras, presidentas negras, que formemos uma elite negra intelectual e financeiramente falando. Mas, gente, no Brasil isso vai demorar, o processo infelizmente é lento dado o racismo estrutural que impera aqui. Porém, alguém tem de começar, espero que saibamos receber as que chegam.

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