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  • Jussara Santos

"...prefiro vender droga."



          Se você lê meus vários escritos há algum tempo, já deve saber que escolhi ser professora. Leciono. Não sei ainda bem o que significa esse fascínio pela educação. Em certos dias, quem sabe vocação. Em outros, quem sabe sorte. Em alguns, é martírio mesmo. Já vivi e vivo diferentes situações em sala de aula, nelas muitos sentimentos se misturam: espanto, alegria, surpresa, medo, tristeza, afeto.

          Certo dia, trabalhando um texto sobre as diferentes profissões existentes no mundo, chegamos na tão mal falada coleta de lixo. Na época, o profissional ainda era, pra mim, erroneamente chamado de lixeiro. Falamos sobre diversas questões sociais que envolvem essa profissão. De repente, um aluno disse: “-Pois eu, professora, não quero ser lixeiro, prefiro vender droga”. Perplexa, parei tudo, quem já teve aula comigo sabe como a coisa funciona! Nesses momentos, é preciso parar, dar a volta no planeta e começar tudo outra vez. Sim, meu aluno preferia vender droga a coletar lixo.

          Com cadernos fechados, conversamos sobre o declínio da sociedade. Muitos e muitas se surpreenderam quando disse que aquele pensamento era “normalizado” em nosso país e em outros lugares do mundo. Existem profissões completamente invisibilizadas. Quanto menos prestigiada, mais invisível se torna aquela ou aquele que realiza determinada função. Já reparou a forma de tratamento que é dada ao porteiro do local onde você trabalha ou mora? E os profissionais da faxina?

          Durante oito anos, o psicólogo Fernando Braga* varreu as ruas da USP (Universidade de São Paulo) para realização de sua tese, cujo tema era ‘invisibilidade pública’. Em entrevista, Braga disse ter sido ignorado inclusive por professores que, quando o viam uniformizado, de vassoura na mão, fingiam não reconhecê-lo ou não reconheciam mesmo. O psicólogo trabalhava meio período e não recebia salário, uma vez que estava ali para pesquisar. Ele reconhece os muitos aprendizados adquiridos. A importância de um bom dia ou de um pedido de desculpas, por exemplo. O trabalho de Braga tornou-se referência para quem estuda a invisibilidade de profissões consideradas sem prestígio social.

          Quando da realização do trabalho do psicólogo, o escritor brasileiro Moacyr Scliar escreveu e publicou no jornal Folha de São Paulo a crônica: ‘O essencial é invisível.** O invisível também é essencial’. A crônica conta a história de um gari cujo maior incômodo não era varrer as ruas da cidade, mas sim a invisibilidade.

“As pessoas passavam por ele e pareciam não vê-lo. Mais de uma vez quase fora atropelado. Era como se não existisse. Mas, existindo ou não, continuava varrendo as ruas e recolhendo coisas curiosas.”

          Nesse recolher, a personagem encontra uma lâmpada que, por via das dúvidas, achou melhor esfregar. De fato, para espanto dela, surge um gênio que se coloca à disposição para realizar lhe um único desejo.

 

“Era, claro, o gênio da lâmpada. Acrescentou que ele tinha direito a um pedido -em outros casos eram três, mas no caso de garis a cota era de um apenas.”

         

          Sendo assim, a personagem pede a invisibilidade de fato, para todos os garis da cidade. Uma vez invisíveis, a cidade teria mudado em relação a eles, elas? Para saber, só lendo o texto de Scliar, mas, pelo o que vê em seu dia a dia, é possível tirar suas próprias conclusões.

          Em um passado bem recente, na época de Facebook, um jovem negro que é gari, postou em sua página uma foto onde mostrou uma turma de medicina (formatura) com apenas futuros profissionais brancos e outra onde há o mesmo número de jovens, jovens garis e todos negros. A intenção era mostrar o racismo estrutural que sustenta o Brasil. Para variar, foi criticado, mas Jr Jota, sim, este é o nome dele, deu uma aula em vídeo onde detalha o nítido racismo brasileiro, para o qual muita gente insiste em fazer vistas grossas.  

          Agora, você pode estar se perguntando: “e o menino, o menino que não queria ser lixeiro”? Bem, eu falei muitas coisas naquela aula, mas aprendi, não só com Barthes***, que em sala de aula cada ouvinte é um, portanto absorve o que consegue, alcança aquilo que lhe é possível. Mudar o mundo é uma tarefa pesada que não deve recair sobre os ombros de uma ou de um apenas. Então, fiz minha parte, tentei abrir olhos e ouvidos de todo mundo envolvido ali. Nunca mais vi esse aluno, não sei se ele virou vendedor de droga. Eu prefiro que ele tenha escolhido a coleta de lixo e que isso não tenha sido motivo de vergonha pra ele.


Sou Jussara Santos e até o próximo artigo ou: como diz um personagem do qual gosto muito -  “ te vejo quando te vir.”


*Moisés e Nilce: retratos biográficos de dois garis.Um esItudo de psicologia social a partir de observação participante e entrevistas. Fernando Braga da Costa - USP (Instituto de Psicologia - Departamento de Psicologia Social e do Trabalho)

**Folha de São Paulo - 22/02/2005

Barthes, Roland. Cultrix, 1980


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