É de manhã e acordo com minha mãe ao lado de minha cama. Na noite anterior, mal dormi pensando no pesadelo do dia seguinte. Minha mãe me acorda e penso – “tenho mesmo de ir?” Justo eu que amava estudar, justo eu que amava a escola. É, é isso mesmo que entendeu, o lugar de pesadelo daquele dia tinha nome e se chamava escola. Ir ou não ir? Quis, de verdade, agarrar-me à cama, puxar a coberta, cobrir meu rosto, me esconder lá em casa. Mas no lugar disso, apertei a mão de minha mãe mais forte que de costume e fui. Talvez esteja se perguntando o porquê de tal pesadelo. Eu tinha uns 11 anos e era criança. Eu tinha alegria e gostava de estudar. Mas o que eu “tinha” também era uma professora branca que se recusava a pronunciar meu nome. Ela não dizia meu nome, acredite. Durante a aula era assim: “preta, muda de lugar, preta, isso tá errado, preta, senta direito, preta, troca de lugar”. Eu tinha uns 11 anos e tinha nome e sobrenome. Eu amava meu nome, nome que meu pai escolheu, nome de origem Tupi. Então, qual era o problema com ele, por que não pronunciá-lo? Durante muito tempo caminhei triste para aquelas aulas, pois sabia que todo mundo seria nominado menos eu. Custei a entender que o problema não era o meu nome, o problema era eu, única aluna de pele preta na sala. Embora a escola fosse pública, ela não era pra todos, ela excluía pessoas feito eu. Pra essa professora branca devia ser inadmissível entrar em seu reino alvejado e se deparar com aquela pedra preta pra quem teria de lecionar. Sofri sozinha por um bom tempo, pois achava que não devia contar em casa, meu pais, negros, sofreriam também. Sofri sozinha porque nenhum colega, nenhuma colega, nunca me defendeu, nunca me ajudou, nunca contou pra um adulto o que acontecia naquela aula. Meus colegas e minhas colegas olhavam pra mim com diferentes olhares: havia o olhar que ria debochado, o olhar que se divertia com aquilo, havia o olhar de piedade, olhar que dizia “coitada”, havia o olhar que se abaixava, o olhar que se escondia. Havia o meu olhar, perdido, solitário, sofrido. Creio que comecei a deixá-lo escapar em casa, pois meus pais perceberam e aí acabei contando. Eles disfarçaram bem, mas eu sei que os corações bateram forte, os olhos se encheram de lágrimas e que seguraram a própria dor, pra socorrer com as mãos negras a minha . Na escola, a direção conversou com minha mãe, com a professora branca e com a coordenação. Eu mudei de turno, que era o que eu queria e havia pedido para os meus pais. Nunca contamos pra minhas irmãs, que não eram alunas dela e foi nosso segredo, até este texto. Que fim essa professora levou faço questão de não saber, mas é fato que as marcas ficaram e escrevo aqui a partir delas. Porém, o motivo principal desta escrita gira em torno de uma educação antirracista, ou seja, é preciso entender que o racismo estrutural que moldou o país também atinge o ambiente escolar e toda uma formação de jovens negros e negras. Minha família, a seu modo, me ensinou o que é ser negra, o que é ter pele preta no Brasil e sempre me orgulhei de minha pele. Por isso, agarrei o adjetivo preta que aquela professora me lançava todos os dias de sua aula e o fiz mais meu, porque entendi que o problema era ela, não eu. Porém, poderia não ter sido assim, outra menina negra, outro menino negro sem uma estrutura familiar, social, psicológica, poderia ter se excluído no e do mundo. Portanto, é preciso ir pra além de leis e de dias específicos de comemoração sobre as questões raciais. Uma educação antirracista tem de acontecer todos os dias, em todas as aulas, deve ser assumida por educadores, educadoras negras e não negras, é uma atitude coletiva e não individual. É difícil começar? Que tal começar pelo nome, palavra simples e complexa ao mesmo tempo? Quando escrevi a novela infanto-juvenil Indira, pensei na temática do nome porque ele, de certa forma, nos constrói. Nome é identidade, quer coisa mais importante que isso? Se professor, professora for, em sala de aula, não defina seu aluno, sua aluna pela cor da pele dela ou por um número. Saiba o nome de todos e de todas. Eu estou longe de ser unanimidade em termos de sala de aula e que bom, sou humana, tenho altos e baixos, mas é fato, sempre busco saber o nome de meus alunos e alunas, pois por trás de números em chamadas escolares, por trás de RGs, CPFs, PIS, contas de banco, senhas, há pessoas, sempre haverá pessoas. O meu nome, de origem Tupi, designa uma palmeira que tem espinhos. Os indígenas os utilizavam como agulhas pra tecer. Assim, teço palavras, palavras às vezes espinham e ainda fazendo jus à palmeira que carrega um pó que causa ardor - prefiro arder que calada morrer.
Sou Jussara e, sim, me chame pelo meu nome.
Professora e doutora Jussara, me emocionei com sua história. Uma coisa que sempre falo é que no dia que eu desencanar, quero levar um papo sério com "o criador" para entender porque as coisas são como são. Você é maravilhosa, exemplo de mulher vitoriosa. Meu orgulho!!!! Gustavo Barroso
Revoltante, emocionante e reflexivo!
Um grande e forte abraço!