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  • Jussara Santos

Defenda a liberdade de viver sua dor: uma reflexão sobre o luto


Não faz muito tempo, assisti a dois filmes: Beleza Oculta e Cake. No primeiro, o protagonista Howard Inlet, interpretado por Will Smith, é um publicitário bem sucedido que vive uma tragédia pessoal. (Opa! Spoiler!) Não, não. Não vou roubar o seu prazer de assistir a essa fábula moderna. Mas, sim, ele vive uma tragédia pessoal e a partir daí se transforma por completo.

Três palavras sustentam a vida e o trabalho de Inlet, são elas: amor, tempo e morte, não necessariamente nessa ordem. Ao longo do filme, literalmente, as três palavras são materializadas e, em interação com elas, a personagem questiona conceitos de amor, vida, morte, fé, entre outros. O título em português Beleza Oculta - Collateral Beauty no original - é bem significativo e ao final deste artigo você, leitora, leitor, entenderá o porquê.

O ator Will Smith é magistral em filmes que nos levam a refletir sobre a morte, consequentemente sobre a vida. É assim também em Sete vidas - Seven Pounds - onde interpreta um homem atormentado que, em busca de redenção, associa-se a sete outras vidas.

O outro filme aqui citado é Cake que não teve o título traduzido, acredito que para não causar estranhamento, uma vez que a palavra significa bolo. É isso mesmo, leitora, leitor, bolo. O título se explica ao longo do filme e tem tudo a ver com a situação vivenciada pela personagem. Em atuação que considero magistral, Jennifer Aniston interpreta uma mulher que sofre uma perda, uma grande perda familiar e, desde então, sofre com dores, uma dor física insuportável que a deixa dependente não apenas de remédios.

Mas por que esses filmes? Por que essas personagens? Ambas passam pelo processo de luto e vivenciam todas as etapas pelas quais passamos quando perdemos alguém que amamos. E não importa se a perda foi repentina ou se você pode segurar-lhe a mão, dizer que ama, afagar-lhe os cabelos ou talvez até beijar-lhe a face. Não importa, pois é o instante da perda que sobressai dentro de você e você tenta resgatar todos os momentos vividos juntos, incluindo as pazes que muitos não se dão a oportunidade de fazer. Depois vem a raiva, o ódio mesmo, de aquela pessoa ter ido e você ter ficado. Como assim? O que você (eu) faz, faço agora?

Em Beleza Oculta, Howard Inlet vira o centro das atenções de sócios, considerados amigos, que temem a derrocada da agência, uma vez que o chefe da equipe está desequilibrado. Já a personagem de Cake tem na senhora que trabalha em sua casa um possível porto seguro. Ela se preocupa com a patroa e fica ali tentando cercá-la de cuidados. Quem aí, em algum momento de perda, não teve um amigo ou amiga que parecia te sufocar de tanta preocupação, de tanto mimo, de tanto telefonar para saber se você estava bem? Geralmente na hora que você está se libertando da sensação amarga da perda, toca o telefone e é sua amiga ou amigo com a lâmina afiada em forma de pergunta:

- Você está bem, melhorou?

Dá vontade de responder com um sonoro Não! Não, pois agora voltou tudo, todas as sensações: a dor no estômago, a espuma na boca, o quase vômito, o grito, é, o grito que você guardou porque tem sempre alguém pra dizer que não se grita em velório. Por que não? A dor é sua, o grito é seu, grite se você quiser.

Quando minha mãe morreu odiei todas as outras mães do mundo. Odiei quem eu conhecia - e quem não - que tinha mãe viva. Eu não entendia como aquela mãe estava ali e a minha... Também nunca a imaginei dormindo fora da casa dela, da cama dela. Deitada, pensava em minha mãe dormindo sozinha em outro lugar.

Bom, leitora, leitor, o que eu fiz com esse ódio? Sinceramente, não sei. Uma das palavras que sustentam a vida da personagem de Beleza Oculta é – tempo. Sim, o tempo é o condutor de todas as coisas. Parece clichê, mas não é. Com o tempo, entendi que o ódio só nos afasta das pessoas e eu não queria me afastar de muita gente, só de algumas (!). Com o tempo, entendi que aquelas mães vivas e suas filhas e filhos não eram responsáveis por eu haver perdido a minha. Com o tempo, entendi que em algum momento uma de nós partiria, cabendo, àquela que ficasse, o coração vazio.

Para as personagens interpretadas por Smith e Aniston não coube nenhuma carta deixada, pra mim também não coube. Não sei se a você que lê este artigo coube ou caberá uma carta de despedida. Quando perdi meu pai também quis uma, procurei mas não havia não. Também não sei de que me adiantaria, penso que isso é fruto da visão romântica que insistimos em construir sobre a morte. No fundo, romantizamos muitos momentos em nossas vidas quando, na verdade, alguns deles são duros, cruéis, doloridos e realmente nos ceifam.

Tanto em Beleza, quanto em Cake, as personagens, depois de passarem por muita dor, se reconstroem. Ambas encontram um novo caminho de vida e sobrevivem a ela. É, não gosto da já gasta palavra superação. Sim, eles sobrevivem e seguem caminho, mas o mais interessante é que não há fórmula mágica, não há um salvador ou salvadora da pátria. Há quem ajude e não devemos abrir mão de quem pode nos ajudar e quer fazê-lo. Mas o que as “salva” são elas, elas com seus conflitos e a reflexão sobre os mesmos. Reflexão sobre o distanciamento das pessoas, sobre a dor. É isso que as faz voltar à vida, depois de haver morrido também.

Portanto, vivencie, leitora, leitor, seu processo de luto, seja ele qual for ou por qual razão for. Depois de muito tempo aquelas fotos às quais, a princípio, você se apega com medo de esquecer o rosto de quem ama, mas que depois você rejeita porque não quer lembrar (confuso né?!), depois de muito tempo você as reencontrará. Retomará seu álbum de vida e vai chorar muito, mas vai rir muito também e tudo estará ali fresco em sua memória e em seu coração, de onde, na verdade, nunca saíram.

Se alguém disser que já está na hora de deixar seu luto passar, diga não, caso sinta que essa deva ser a resposta. Defenda a liberdade de viver sua dor. Porém, lembre-se de que no pilar da personagem Howard Inlet há ainda a palavra amor. É, tempo, amor e morte se entrelaçam nos estranhos caminhos de nossas vidas.

Dessas três palavras, talvez tempo seja a que possua peso maior. Uma das personagens, ao confortar, no filme Beleza Oculta, uma outra que sofreu uma perda, diz, à maneira dela, que no início dói muito, mas que, com o passar do tempo, começamos a ver a vida a partir de um outro olhar. Passamos a observar o vento, as folhas, as pessoas e percebemos que ali existe uma outra beleza, uma beleza oculta.

Eu digo que nessa beleza repousa o melhor, o mais sublime de quem perdemos e tudo ganha novo significado, nós ganhamos novos significados. Mas tudo isso acontece somente com o passar do tempo e tempo cada uma, cada um constrói o seu. Não se apresse.

Sou Jussara Santos e até o próximo artigo.

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