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  • Jussara Santos

"Mas isso não é uma mulher, é uma mulata"


Sim leitoras e leitores é isso mesmo, vocês não leram errado. Frase assustadora, não?

Pois era o último dia de aula de um dos muitos cursos que fazia, na transição entre adolescente e adulta. Sempre gostei de estudar, mas quando adolescente briguei com a escola. Achava que sabia muito e que ela, a escola, sabia pouco. Hoje, hoje eu sei que todos nós não sabemos nada ou quase e a escola, por mais que tente, nunca vai preencher as lacunas que aumentam, quanto mais lemos, quanto mais conhecemos.

Mas, voltando, leitores e leitoras, àquele último dia de aula, de um daqueles muitos cursos que fazia, vi meus colegas, assentados nas carteiras da frente, aproveitarem o atraso do professor para falar sobre nós: mulheres. Até aí, tudo bem, cada um fala sobre o que quiser. Porém, de repente, em uma atitude bem infantilizada, um deles disse: "-Vamos desenhar mulher no quadro?" Imediatamente, os seguidores, também infantilizados, correram para o quadro e começaram a desenhar. Eu e minhas colegas achamos aquilo ridículo e pensamos com desdém: "arre, meninos!"

Enquanto um deles desenhou uma mulher de cabelos longos e lisos, quadris finos, magra, um outro desenhou uma mulher de quadris largos, peitos cheios, cabelo crespo, bem crespo. Foi então que tudo se deu. O colega que desenhou a mulher com traços de uma pessoa branca reagiu assustado, ao ver o desenho que o outro fez. Prontamente falou: "- Mas isso não é uma mulher, é uma mulata". Impossível reproduzir aqui a ênfase dada por ele ao termo mulata.

Ao ouvir aquilo, olhei direto pra ele. Pairou um silêncio sepulcral. Eu era a única jovem negra na sala, minhas colegas me olharam sem graça e buscaram formas de amenizar o “inamenizável” (bom, essa palavra não existe, mas define bem aquele momento). Foram segundos que se transformaram em horas. O colega que desenhou a mulher de cabelo crespo e quadris largos não disse nada, deu um risinho chocho, enquanto eu fuzilava com o olhar o autor da frase. Esse, por sua vez, ficou ali, entre o que foi que eu disse e o deixa pra lá. Quando saí do torpor e me senti pronta pra questionar meu colega, o professor chegou. Abruptamente, apagou o quadro sem nem olhar para o que estava escrito nele e, ofegante, falou sobre o fim do curso, agradeceu ao mesmo tempo em que dizia de cálculos e de números.

Enquanto a aula acontecia, da minha carteira, olhava para aquele cara na tentativa de entender o que passou naquela cabeça e o peso de frase tão preconceituosa. Ele assistiu a toda aula de costas pra mim e, ao ouvir o sinal, saiu rápido, fugiu mesmo. Nunca mais o vi e sua imagem foi deletada de minha memória. Porém, a infeliz frase ficou guardada dentro de minhas gavetas cerebrais e, de vez em quando, ela sempre volta. Acho que por isso decidi escrever sobre ela, para, enfim, após refletir, colocá-la em outro lugar.

Assim, pensem comigo: ao iniciar a frase com uma conjunção adversativa – mas – meu colega marcou uma oposição entre mulher e mulata, para ele, signos e significantes totalmente distintos. Ele empregou ainda o pronome – isso - que pode ser utilizado para diferentes fins. Porém, na fala dele, esse pronome assumiu uma carga pejorativa alta, uma carga de desvalorização, já que ali – isso - podia ser qualquer coisa, até uma mulher, até uma mulata, expressão também de carga pejorativa.

Refém ou não da etimologia, é fato que o termo mulato/mulata vem do latim mulus. A palavra mulo indica animal híbrido, estéril, nascido do cruzamento do cavalo com a jumenta. Segundo vários dicionários, por volta do século XVI, o termo mulato passou a ser aplicado, por analogia com o animal híbrido, a descendentes de brancos e negros. Portanto há que se reconhecer a negatividade da expressão. Além disso, a história já mostrou e mostra que mulheres negras escravizadas foram vítimas de estupro, logo, a tão cantada mestiçagem ou miscigenação é resultado de atos de violência.

A frase proferida por meu colega nos mostra que as palavras também são chicotes dependendo do como, do quando e de quem as usa. Muitos falam hoje do retorno da violência contra a mulher como se essa violência -paradoxalmente uma palavra feminina- houvesse acabado um dia. Nós mulheres negras somos violentadas até hoje, quando, por exemplo, nos vemos representadas na tevê, no cinema, na Internet, de maneira debochada, vexatória, hipersexualizada. Com poucas variações, quando não somos mulheres escravizadas, somos as que dormem com o patrão, as dançarinas, as que têm gingado, o objeto, ou seja, a escravização persiste.

Uma amiga me disse, certa vez, que no auge da garota Globeleza (aquela que dançava nua no chamado horário nobre) chegava na escola onde lecionava e os alunos a chamavam de professora Globeleza. Ao pedir para que parassem, foi questionada pelos próprios colegas de trabalho, mulheres e homens que afirmavam não entender o desconforto dela: “Gente, a Globeleza é bonita, um mulherão, tem samba no pé, não fica triste, é um elogio”. Elogio pra quem? Pensem na força do preconceito e do racismo que determina os lugares que nós negros e principalmente nós mulheres negras podemos ocupar. Professora não, passista sim, pode. Pois saibam que não há nada de revolucionário em dançar nua na tela da tevê, nada se faz além de afirmar que esse lugar da eterna sensualidade e da sexualidade exacerbada é o que nos cabe.

Osvaldo Sargentelli, empresário da noite carioca, ficou conhecido como “embaixador do samba e das mulatas”. Uma vez, em entrevista*, disse que sempre que chateado reunia as mulatas em casa e tudo passava, quer fala mais colonial do que essa? Respeito que as mulheres que representaram e representam esse papel fizeram e fazem dele um trabalho e por ele foram e são remuneradas, mas isso não tira a força do preconceito e do racismo envolvidos ali. Não me sinto representada pela Globeleza, também não me defino como mulata, muito menos sou morena. O Brasil realmente é formado por diferentes etnias, mas a mistura por aqui é válida quanto mais de pele clara nascer seu fruto. Já ouvi de um cara branco que, se tivéssemos um filho, ele pediria pra não nascer um “nego aço de cabelo sarará”, me livrei dele, lógico! (Não, não se preocupem, não me livrei dele literalmente, é uma metáfora!)

Sendo assim, nós mulheres negras somos muito mais que datas comemorativas. Por isso, que tal repensar os muitos estereótipos de outdoor** que nos congelam? Me perguntaram um dia: “Você, tão bonita, sofre racismo?” Devolvi a pergunta: “Ah, então se eu for feia não tem problema?” E o que é ser feia, o que é ser bonita?

Que reavaliemos, leitoras, leitores, nossas opiniões. Que reavaliemos as imagens que fazemos do outro, da outra, nossos preconceitos, nossas atitudes. Nós mulheres negras somos sim professoras, educadoras, escritoras, médicas, terapeutas, musicistas, bailarinas, donas de casa, mães, amigas, somos o que pudermos e o que quisermos ser. A violenta frase do meu colega me chicoteou naquele dia. O discurso masculino, machista pouco mudou e ainda nos chicoteia, mas o meu discurso sim, esse se transforma um pouquinho todos os dias e na força da escrita – palavra também feminina – afirmo: ainda que muitos e muitas não creiam, eu crio.

*https://www.youtube.com/watch?v=kem13BVEmOY

**Santos, Jussara. De Minas: Impressões de Minas 2015 - Poesia

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