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  • Jussara Santos

HORA FRIA


É tanto tiro,

eu ouço todos os tiros, ouço todos os dias, todos os tiros, moça, parece até festa de São João, aquelas festas grandes sabe com muita gente e os fogos explodindo, cê já foi nessas festas moça (?), eu ia muito, era bonito, meu minino era bonito também moça, meu minino também gostava dessas festas. Atiraram no joelho primeiro, no joelho esquerdo, bem do lado do coração moça, mas mesmo assim levantei, aí atiraram na perna, não sei em qual primeiro, mas atiraram, numa só, eu nem entendi na hora por que (?) não atiraram nas duas de uma vez, acho que pra me deixar levantar e tentar andar de novo, aí moça eu levantei, então atiraram na outra, aiii, ouviu, ouviu o grito, agudo né, igual o grito que dei na hora do primeiro parto, dói moça, no frio então, ouve, ouve o rojão, é guerra mesmo. Moça, quando atingiram a outra perna, eu arrastei, sabe, arrastei muito, acho que tentava chegar em casa, mas tava doendo, a casa era longe, cansada, fiquei ali mesmo, deitada com a barriga na minha poça de sangue, esperei o de misericórdia, demorou mas veio, ficaram assistindo a agonia moça, e tava frio, sangue de filho morto não é o mesmo sangue de menstruação né (?), no frio dói, dói mais, dói o joelho, os ossos estilhaçados de minhas pernas, meu ventre então, todo revirado moça, a cada hora fria a violência de meu segundo parto, perder filho é parir às avessas, põe a mão no meu ventre, põe, ele parece vazio, mas tá cheio, cheio de tiro...

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