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Jussara Santos

É permitido sentir



Há pouco tempo reassistir ao filme Equilibrium, quando lançado ele não fez tanto sucesso na mídia, hoje é considerado cult. É um filme de 2003 com Taye Diggs e Christian Bale. Se feito hoje, acredito que tecnologias cinematográficas dariam efeitos melhores ao filme, mas o mais importante é a carga reflexiva que a história desencadeia.

Em linhas gerais, com a raça humana devastada, governantes criam uma droga pra inibir sentimentos, acreditando que a paz se faria assim. Uma sociedade perfeita, sem brigas, uma sociedade feliz. A arte foi eliminada, pois é vista como propulsora do sentir. Nessa nova sociedade, nada de livros, música, dança. Porém as questões são: e se nem todo mundo quiser tomar a tal droga? E se alguém ainda quiser sentir? E quem são esses governantes, como eles vivem, de que desfrutam em detrimento do apagamento dos sentimentos da humanidade?

Neste mês de outubro, onde comemoramos datas importantes - dia da criança e dia do/da professor/professora - pensei no que andamos sentindo a partir do afastamento forçado das escolas, das salas de aula, dos alunos e alunas, dos colegas de trabalho. Se vivêssemos na sociedade de Equilibrium, injetaríamos, sim a droga é injetável, o líquido salvador e agiríamos como se nada estivesse acontecendo. Mas será que estamos sentindo alguma coisa mesmo?

Feito avalanche, o ano de 2020 trouxe um vírus que ceifa vidas, sonhos, histórias. De repente, me vejo diante de aulas online, justamente eu que gosto de dialogar com alunos e alunas, gosto de tours literários pela biblioteca, conversas em círculos, atividades em dupla e em grupos, jogos. O distanciamento e a frieza de um computador nos impôs outras dinâmicas de trabalho, além de uma recompreensão dos conceitos de vida e de morte - palavras pequenas que significam muito. Quando o vírus chegou e nos vimos diante do desconhecido que entrava sem pedir licença em nossas casas, em nossos locais de trabalho, em nossos pontos de encontro favoritos, o medo gritou e gritou muito alto, nos assombrou e, com um pouco menos de intensidade, nos assombra até hoje. Afinal, qual pessoa séria ainda não sai de casa com álcool setenta por cento, máscara, uma boa dose de fé protetora, fazendo o sinal da cruz? Sim, ainda tememos o invisível que sabemos faz estragos.

Mas porque digo tudo isso? De forma mais acentuada durante a pandemia, ouvi demais a expressão heroína, herói para definir a nós que trabalhamos lecionando. Sempre que alguém assim nos define sinto-me extremamente incomodada, pois uma vez heróis, deixamos de ser humanos. Somos envoltos em uma aura de superpoderes que, na verdade, não temos. Professores sofrem, sentem dor, alegria, tristeza, medo, professores morrem. Algum colega ou alguma colega sua morreu de Covid? Talvez a resposta seja não, mas e nas escolas do seu bairro, da sua cidade, do estado onde você mora? Muitas e muitos de nós foram tragados por esse vírus, tragados porque não havia vacina, porque para muita gente não havia problema em lotar salas de aula, afinal “é vida que segue”. Tragadas porque não havia álcool 70%, não havia tapete higienizado.

Uma amiga me disse que em uma reunião da escola onde leciona, no auge da pandemia, sugeriram que professores/professoras, sem computador ou internet em casa, fossem pra escola e trabalhassem de lá. Ela me disse que ficou angustiada com aquela fala porque estava com medo e não pretendia enfrentar o vírus – “mas e se descontarem no meu salário e se eu levar falta?” Depois, ela me falou que pediu ajuda no prédio onde mora e conseguiu trabalhar de lá. Falas feito a ouvida pela minha amiga professora são carregadas da ideia de que devemos ser abnegados, “sala de aula acima de tudo” – alguns diriam - Certa vez, alguém compartilhou em rede social um vídeo de um professor que atravessava um rio pra dar aula, atravessava inclusive alunos. Imagens assim são compartilhadas com legendas tipo - esse é professor mesmo, esse nasceu pra lecionar, esse é vocacionado - e tantas outras que não questionam os governantes que permitem que um profissional passe por aquilo, que permitem que crianças acessem a escola de maneira tão desgastante.

Eu evito compartilhar imagens assim, não concordo com elas. Penso que não somos heroínas nem heróis, somos pessoas que sentem muitas coisas, inclusive medo. Pessoas que têm direito a um local de trabalho bem estruturado pra exercer o ofício de ensinar, pessoas que têm direito a um pagamento mensal que faça jus ao trabalho de elaboração e mais elaboração de atividades e provas, trabalho de correção constante, trabalho de construção de formas e mais formas pra explicar o mesmo conteúdo em turmas pra lá de heterogêneas. Durante a pandemia e o chamado isolamento social tenho pensado sobre as tragédias que acontecem próximas de nós ou não e de que forma reagimos coletivamente nas escolas. De modo geral, muitas e muitos voltam pra sala de aula retalhados, porém, seguem em frente, fazem uma ou outra discussão de forma solitária: ela e seus/suas alunos/alunas, ele e seus/suas alunos/alunas. Por que não paramos coletivamente? Essa é a pergunta que me persegue.

Quando a lama levou sonhos, projetos, vidas na cidade de Mariana, eu estava bem pertinho de lá, em Ouro Preto para uma discussão sobre literatura. O evento aconteceu com parte da cidade ao lado submersa e atônita. De volta a BH, entrei pra sala de aula. Alguns anos depois, a lama se repetiu ainda maior em Brumadinho, minhas férias estavam terminando e... voltei pra sala de aula. Nesse intervalo, houve ainda um viaduto que caiu, esmagou projetos, sonhos, vidas. Tinha uma copa do mundo no meio do caminho. Escola é espaço de formação e falar sobre tragédias cotidianas faz parte disso, mesmo que não seja a forma mais agradável de nos formarmos. Então, segue a pergunta: por que não falar coletivamente delas? Quando a professora Heley de Abreu Silva Batista protegeu os alunos e as alunas dela de um incendiário e morreu queimada, a considerei heroína e sigo considerando, porém, não sei se ela se veria assim. Ela defendeu o que naquele momento era seu bem maior, talvez ela dissesse que apenas estava fazendo o seu trabalho. O meu trabalho, naquele dia, foi dar aula mais uma vez retalhada.

Embora não viva na sociedade de Equilibrium percebo que todas as manhãs nos injetamos uma droga invisível que nos libera de sentir e então seguimos saltando a pessoa que dorme na rua, saltando o que pede comida, saltando uma pandemia que pra muitos e muitas nem existiu. Uma vez que não sentimos tiramos as máscaras, afinal não foi parente meu que morreu ontem naquele hospital próximo da minha casa.

Por isso, mesmo que pareça tarde, proponho que você sinta, ainda é permitido sentir. Ao retornar para salas de aula lotadas, não volte ao normal porque o normal é a nossa invisibilidade – professores, professoras, alunos, alunas. O normal é o salário baixo, o normal é trabalhar doente, o normal é não faltar por medo do desconto no salário. Portanto, se dê o direito de parar um minuto por você, pelo seu colega, pela sua colega levada pelo vírus, pela criança que é seu, sua aluna, muitas vezes abandonada, violentada, muitas vezes com fome não de conhecimento, mas de arroz e feijão mesmo. Sinta enquanto nenhum governante com uma canetada nos impeça também disso. Eles estão tentando, mundialmente tentando e se não continuarmos sentindo, hora dessas o decreto é publicado, lido e afixado em praça pública e não haverá droga que nos salve.


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